quarta-feira, 30 de julho de 2014

Salto no Escuro

                                                                 imagem: www.retina78.com.br

Surpreendi-me com esse modesto e despretensioso livro. 
O fato do autor ser homônimo do esteta guitarrista do Pink Floyd foi um atrativo a mais para que o retirasse da estante.
Em cena, um pai preocupado (pleonasmo) porém, libertário, e um filho com aversão aos bancos escolares, notas desastrosas e indiferença olímpica a tudo o que se referisse ao ambiente mofado e retrógrado de uma escola (segundo a visão do livro). O medo do pai, crítico de cinema, é que o filho lhe escorra pelas mãos, tão grave era sua apatia.
Não me detive na ousada proposta feita pelo pai, a de seu filho deixar a escola e assistir com ele, três filmes por semana.
Decerto, há alguns anos, compraria a tese, a utopia, a antiescolaridade embutida na narrativa, como uma saída contra o sistema.
Mas me detive nas análises das relações do filho, idiota como todos os homens, principalmente adolescente, e as mulheres de sua vida.
Há uma intensidade, um desespero contido, uma tensão que o pai imprime na trama, que demonstra o frágil equilíbrio entre a experiência e a inutilidade dela frente ao confuso e babaca cidadão aprendendo a viver da única maneira possível: quebrando a cara de paletó e gravata...solenemente.
Não se pode ensinar nada a um adolescente. Nem quando também se errou tanto quanto ele pode errar em sua jornada a dias menos turbulentos.
A análise dos filmes elencados, decerto foge do corriqueiro, e o rol pode surpreender pela heterogeneidade. Não só filmes de arte, ou dramas, ou filmes europeus...diversidade inclusive na qualidade artística marca e obra.
Em alguns momentos, há lirismo, em outros é só o desespero e o não saber que passo dar.Afinal, educar pode ser extremamente difícil...enigmático...arriscado...aterrorizante.
Gilmour escreve bem, tem estilo e se contém. Mais que suas digressões, privilegia o relato.
Pena. Poderia ser um livro mais saboroso se divagasse mais.
No fim, se lê com prazer. 
E deixa certa nostalgia.
Como um lugar onde se devesse ir mais vezes.


terça-feira, 22 de abril de 2014

Muito Além do Óbvio- Garcia Marquez

                                                                            www.skoob.com.br

Um portal de grande credibilidade e aceitação promoveu uma votação para "eleger" o melhor livro de Gabriel Garcia Marquèz após sua morte recente.
As porcentagens refletem tendências um pouco óbvias que a mídia acaba por perpetuar.
"Cem Anos de Solidão" dispara na frente, e outros títulos acabam por ficar na poeira, eclipsados pelo que é o mais incensado e lido(?) livro do autor que, se não era uma unanimidade, tornou-se após seu passamento(embora qualquer evento esportivo ou artista de novela que bata o carro possa ter mais repercussão).
O fato é que "Cem Anos" é um livro mais comentado que lido, mais comprado que entendido e frequente mais as estantes que as mentes.
Não discordo do fato de que ele é mágico ( e eu só uso este adjetivo para coisa muuuito mágicas, como músicas do Led Zeppelin e olhos escuros a fitar você nos olhos). Uma ciranda vertiginosa como o bolero de Ravel, ou "As Mil e Uma Noites".
Porém, "O Outono do Patriarca" foi o livro dele que me seduziu nos longínquos anos 80. 1982 para ser mais preciso, pois o li no 3o. ano do Ensino Médio, que na época era colegial.
Devo dizer que ele contaminou tudo que escrevi desde então, com sua absoluta liberdade formal de se escrever como se fala, sem respeito à pontuação, às convenções, às regras, e a partir de então, eu entendi o peso que o modernismo veio a ter nas letras e na mentalidade das pessoas, bem como na postura ideológica que se tinha então.
E a temática: decadência...do poder, do homem, daquele que se julga detentor da vida e da morte de pessoas, do ditador, que apesar do autoimputado poder é apenas um ser humano, com sua finitude, suas limitações, sua miséria, que a riqueza material não consegue esconder.
A alternância de vozes e de pessoas, a menina explorada que lhe dedica ternura, apesar de ser seu objeto sexual, e a óbvia alusão às ditaduras e ditadores tão em voga na América Latina, o fazem um livro de primeira grandeza.
Há críticos que o considerem datado, visto o contexto sócio-político em que foi engedrado, ao contrário de "Cem Anos" que se mostraria atemporal como toda obra-prima.
Considero, porém, que esta alegoria acerca da efemeridade da vida e do poder, transcende o mero contexto político.
É um livro de primeira grandeza, e lamento estar no último lugar da lista. Mas sei que padece da distância, do tempo e do contexto.
Leia e discorde de mim, se o quiser.
Mas acredito que Gabo é mais que "Cem Anos".
 

terça-feira, 25 de março de 2014

Poesia

                                                              www.justrealmoms.com.br

   O pai tirou o maço de Continental sem filtro, pequenininho, com o mapa da América do Sul estampado em dourado. Acendeu sem pressa. Limpou o suor do rosto e tirou uma baforada larga, a fumaça subindo solene e lenta, e se perdendo na tarde.
   Eu sempre observei o pai. Ele tinha ( e tem ) um jeito especial para batizar coisas e pessoas, que marcou nossa infância. Cigarro para ele, era giz. Meus primos eram o "Bizôrro", o "Chumbinho" e o "Branco", sendo que o "Bizôrro" era baixinho e gordinho, o "Chumbinho" era magro e pequeno e o "Branco" era dessa cor mesmo. O engraçado nisso tudo é que a pessoa ficava com a cara do apelido, ou o apelido ficava mais parecido com a pessoa do que o próprio nome. Se não ficasse, era porque não tinha mais jeito de ficar, a pessoa já era quase aquilo mesmo.
   O jeito que ele tem com as mãos também é digno de nota. Mãos grandonas, de gente da roça, dedos poderosos que me davam sólida impressão de força, mesmo já não estando mais na roça , mesmo tendo percorrido o mundo, sujo de graxa nos trilhos da Central, mesmo ficando velho a cada dia que passa.
   Eu ia arquivando na cabeça um montão de coisas. Não me esqueço de que ele ultrapassava a gente com as pernas compridas e ficava rindo lá na frente. A gente chorando de cansaço, debaixo daqueles sóis ardidos , naquelas ladeiras espichadas demais para nosso pouco tamanho, e ele rindo. Depois, ele rodava uma corda imaginária e laçava a gente, pra ajudar a subir. Isso, mais do que tudo me agoniava, que eu, nem meus irmãos sentíamos ajuda nenhuma. Ele só ria.
   O pai é analfabeto de letras. Mas só delas, porque ele é mestre de um monte de coisas que não sejam ler e escrever.
Desde que eu conheço o pai que ele anda com o bolso cheio de semente, e aquela que precisasse secar, ele colocava em pedaços de papel  de pão deitados  no telhado. Depois, saía semeando vida em todo canto, até no quintal dos outros, sem autorização. Abóbora, tomate, rosas brancas, árvores!  Bolsos cheios de vida!
   Sei que o velho domina também a magia das palavras. Talvez por isso ele acerte tão na mosca quando dá um apelido a alguém. Vez por outra eu ia me apercebendo disso do meu jeito. Numa dessas vezes tinha chovido muito, a semana inteira. O pai me deu , então, uma lição de poesia. A gente voltava pra casa, o pai dirigindo e eu tinha medo daqueles barrancos caírem na gente, mas não falava nada, ter medo na frente do pai não era coisa boa na minha cabeça, que o pai não tinha medo de nada. Com cara  de quem tá preocupado, eu perguntei se aquilo tudo não caía, e ele falou que quando chove tem perigo, mas o perigo maior é quando para de chover. A terra en-xú-ga, e foi assim mesmo que ele falou, com acento, fica sôu-ta, e foi assim mesmo de novo, e cai pela estrada. E o en-xú-ga que ele falou foi tão vivo e forte e expressivo, que deu pra sentir a terra sôu-ta na garganta dele, o cheiro da terra úmida secando, se esfarelando avermelhada ribanceira abaixo, cheiro igual ao do sol fraco depois da chuva, de ar frio, igual a garoa com sol, casamento de espanhol, sinal certeiro de arco-íris, de garoinha barulhando no telhado, de bem-te-vi contente e de cigarra escandalosa em dia de Finados, com o sol ardendo na caiação dos túmulos e chamando chuva "braba". O pai tem a poesia entalada na garganta e nem desconfia.
   Pois então! Como eu falava no começo , eu vi  o pai acendendo o giz, cuspindo na mão e cortando a terra sem pressa e com precisão, dosando força e arte com uma enxada larga e cega. O corte que ele fez foi tão simétrico, tão exato, que eu fiquei ali com cara de bobo, olhando o pai que fumava distraído. Ele nem sabia que o que ele tinha feito era uma obra de arte, o chão cortado a laser, precisão milimétrica. Ou se soubesse, não achava nada demais, onde já se viu camelar com enxada ser obra de arte?!
   Aprendi com ele que há artes e artes neste mundo afora, e que nenhum doutor ou mestre , cuspindo citações saberia fazer.  Um poema braçal , foi isso o que ele fez ...arquitetura miúda, arte de joão-de-barro!
   O bobo do pai tem saudades até hoje da escola que ele não foi, a não ser umas poucas semanas picadas do primeiro ano da escola de roça. Mesmo assim, ele sabe quanto medem as jardas e milhas das distâncias do mundo, e quanto pesam as onças e libras das farturas tão mal distribuídas do mundo, e isso só ele e sua infância mirrada sabem o quanto. Sabe também que certas curvas das estradas do mundo medem noventa graus, sem conhecer Euclides, só o seu Cride, compadre dele, nem Tales, a não ser o neto do seu Luís, vizinho dele. E sabe olhar para um caboclo e saber pelo jeito  de andar e de falar se ele presta ou não vale nada, com margem de erro de apenas 0,01 por cento.
   E tudo isso, com o bolso cheio de sementes!
   O pai me ensinou poesia!
   A mãe, porém ,mais que tudo, me ensinou a ter coração e a fazê-lo grande.
   se não, como eu saberia tudo isso do pai?

  

  

sábado, 22 de março de 2014

Mediano Opúsculo

                                                               www.livrariasaraiva.com.br
O gênero romance policial é um facilitador.Já se entra em campo com audiência ganha; há público cativo e fanático.
Porém, seu maior trunfo é também um limitador, pois os detratores do estilo, muito raramente se curvarão a ele. Afugenta uma grande parcela de leitores, que por falta de gosto, paciência ou afinidade, não se arriscam a enveredar pelos meandros por vezes tortuosos de uma investigação.
"O Chamado do Cuco", apesar do nome infeliz em nossa língua, consegue, ao longo da trama, num crescendo, ir prendendo e enlaçando a atenção do leitor, utilizando somente da habilidade narrativa, o que, convenhamos, não é pouco.
Talvez a construção da personalidade do investigador(Santo Clichê, Batman!) seja um ponto forte. De inteligência e perspicácia acima da média(isso é para nos fazer pensar que se o escritor cria um personagem tão inteligente, decerto ele o é...) e sem grandes atrativos físicos, em nada nos lembra galãs holywoodianos (embora seja certo que se o livro virar filme, será um deles que herdará o papel).
É somente um cara de meia idade, grandalhão, fora de forma e infeliz. Não se destacaria na multidão. Mas é quase verossímil. E perneta, o que não é um fator a desmerecê-lo. Nem a recomendá-lo!
O artifício do pseudônimo a encobrir J.K.Rowling é um ás prematuramente sacado da algibeira e que talvez, nem influa no decorrer da partida. Primeiramente, porque na contracapa o artifício é revelado. e depois, porque a moça já se desnudou em "Morte Súbita", que em nada faz lembrar de histórias de bruxinhos ou vilões sem nariz.
É inevitável, porém, mencionar que a despeito da fluência e habilidade, há clichês que chegam a exasperar. Estão lá o detetive fracassado, dívidas e frustrações amorosas, a modelo vazia e tristemente fútil e o assassino acima de qualquer suspeita. Além do fato de que todo romance policial nos brinda com uma dupla. De Holmes e Watson, passando por Mulder e Scully (esta dupla também uma referência no quesito "tensão sexual não consumada ou acabaria o suspense e a audiência")todos eles andam em dupla.
Não é redundante comentar  que já se leu muitas coisas parecidas, mas há também que se admitir que é possível ler com interesse. Entretanto, é um trabalho convencional, que nada acrescenta ao gênero, apesar de constituir uma simpática iniciativa.
Parece que o drama humano do protagonista poderia render mais que a trama policial em si.
Holmes, Poirot e demais medalhões não perderão o trono. Esta obra não é a salvação da lavoura, nem o pior trabalho da autora. É um bom livro de uma escritora mediana neste gênero, que receosa de se perpetuar no filão infantojuvenil, arrisca-se com desenvoltura e sem genialidade por caminhos que muitos já trilharam mais vezes e melhor.
Leia. Mas não se decepcione. Deixe-se levar pelo fluxo.
É apenas entretenimento. E dos bons. Mas não ótimo!

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

NÃO LEIA, NÃO ASSISTA


                                                             muitoalem2013.blogspot.com


Eu sei...o filme é leeento, não tem a agilidade, a turbulência, os efeitos especiais, as explosões,as perseguições adrenérgicas e cinestésicas, as lutas coreografadas e os quiproquós todos que seguem a receita, ou a fórmula hollywoodiana.
Não tem a infalível cena de sexo estrategicamente colocada na hora que a produção sabe que o desinteresse começa a comichar o camarada e pode levá-lo ao banheiro, a fumar lá fora, ou a ligar o celular.
Também não tem a lágrima fácil, o nó na garganta prréé-fabrricado, a lição de moral fácil e edificante.
"Na Natureza Selvagem" é arrastado, poético, filosófico, questionador e dá sono em cascas menos grossas.
Não o assista, nem leia o livro de John Krakauer, que parece diário de bordo-reportagem-autobiografia.
Deixe pra mim o privilégio de me deliciar com as vastas e abertas paisagens atordoantes do Alaska, os desertos absurdamente belos, os tipos humanos desajustados, complexos e esquizoides que Alex Supertramp, o alterego de John McCandless encontra pela sua jornada delirante em busca do que Thoreau, Kerouac, Tolstoi e todos os poetas do neoclassicismo buscaram: retorno à Natureza, vida simples, fuga do turbilhão e da hipocrisia civilizada.
E não delicie-se com a voz grave e torturada de Eddie Vedder a acompanhar McCandless pela torturada América dos perdedores, sonhadores, erráticos e desesperançados.
Leia qualquer livro da lista dos mais vendidos, assista a qualquer filme dos recomendados e perca seu tempo vendo novela da grôbu, assistindo BigBarangaBurraBrasil, essa gente que finge alegria e descontração gritando uhúúúú, e vai morder seu pai na bunda.
 
                                   

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

surfista da entropia

                                                            www.lastfm.com.br


Como se explica o fato de que há pessoas com centelha,
com lampejos, com um fator prometeico, que lhes alça
da mediocridade, enquanto outros rastejam como larvas?
Como é possível que Ícaro, com asas feridas ainda se eleve?
Como alguém com as faculdades mentais avariadas possa 
ainda ser maior, mais coerente, mais talentoso que a geração 
pro-tools-autotune-big-shit, imersa em tecnologia e em vazio
criativo?
Por que o trabalho insano, alucinado, fragmentado e cacofônico de Syd Barrett ainda é capaz de soar melhor
que o desses bundinhas para quem ser rebelde é mostrar
o dedo do meio, falar meia duzia de palavrões e torrar o
dinheiro da mamãe em droguinhas da moda?
Tome Syd...já enlouquecido, banido da banda que ele fundou
e idealizou,  como um meteoro incandescido caindo de eternidades profundas, ainda é capaz de entrever laivos de ouro na rocha, lucidez no caos, beleza nas trevas...músicas "criadas" em plena crise mental...deslizando na entropia...tome Syd!