terça-feira, 25 de março de 2014

Poesia

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   O pai tirou o maço de Continental sem filtro, pequenininho, com o mapa da América do Sul estampado em dourado. Acendeu sem pressa. Limpou o suor do rosto e tirou uma baforada larga, a fumaça subindo solene e lenta, e se perdendo na tarde.
   Eu sempre observei o pai. Ele tinha ( e tem ) um jeito especial para batizar coisas e pessoas, que marcou nossa infância. Cigarro para ele, era giz. Meus primos eram o "Bizôrro", o "Chumbinho" e o "Branco", sendo que o "Bizôrro" era baixinho e gordinho, o "Chumbinho" era magro e pequeno e o "Branco" era dessa cor mesmo. O engraçado nisso tudo é que a pessoa ficava com a cara do apelido, ou o apelido ficava mais parecido com a pessoa do que o próprio nome. Se não ficasse, era porque não tinha mais jeito de ficar, a pessoa já era quase aquilo mesmo.
   O jeito que ele tem com as mãos também é digno de nota. Mãos grandonas, de gente da roça, dedos poderosos que me davam sólida impressão de força, mesmo já não estando mais na roça , mesmo tendo percorrido o mundo, sujo de graxa nos trilhos da Central, mesmo ficando velho a cada dia que passa.
   Eu ia arquivando na cabeça um montão de coisas. Não me esqueço de que ele ultrapassava a gente com as pernas compridas e ficava rindo lá na frente. A gente chorando de cansaço, debaixo daqueles sóis ardidos , naquelas ladeiras espichadas demais para nosso pouco tamanho, e ele rindo. Depois, ele rodava uma corda imaginária e laçava a gente, pra ajudar a subir. Isso, mais do que tudo me agoniava, que eu, nem meus irmãos sentíamos ajuda nenhuma. Ele só ria.
   O pai é analfabeto de letras. Mas só delas, porque ele é mestre de um monte de coisas que não sejam ler e escrever.
Desde que eu conheço o pai que ele anda com o bolso cheio de semente, e aquela que precisasse secar, ele colocava em pedaços de papel  de pão deitados  no telhado. Depois, saía semeando vida em todo canto, até no quintal dos outros, sem autorização. Abóbora, tomate, rosas brancas, árvores!  Bolsos cheios de vida!
   Sei que o velho domina também a magia das palavras. Talvez por isso ele acerte tão na mosca quando dá um apelido a alguém. Vez por outra eu ia me apercebendo disso do meu jeito. Numa dessas vezes tinha chovido muito, a semana inteira. O pai me deu , então, uma lição de poesia. A gente voltava pra casa, o pai dirigindo e eu tinha medo daqueles barrancos caírem na gente, mas não falava nada, ter medo na frente do pai não era coisa boa na minha cabeça, que o pai não tinha medo de nada. Com cara  de quem tá preocupado, eu perguntei se aquilo tudo não caía, e ele falou que quando chove tem perigo, mas o perigo maior é quando para de chover. A terra en-xú-ga, e foi assim mesmo que ele falou, com acento, fica sôu-ta, e foi assim mesmo de novo, e cai pela estrada. E o en-xú-ga que ele falou foi tão vivo e forte e expressivo, que deu pra sentir a terra sôu-ta na garganta dele, o cheiro da terra úmida secando, se esfarelando avermelhada ribanceira abaixo, cheiro igual ao do sol fraco depois da chuva, de ar frio, igual a garoa com sol, casamento de espanhol, sinal certeiro de arco-íris, de garoinha barulhando no telhado, de bem-te-vi contente e de cigarra escandalosa em dia de Finados, com o sol ardendo na caiação dos túmulos e chamando chuva "braba". O pai tem a poesia entalada na garganta e nem desconfia.
   Pois então! Como eu falava no começo , eu vi  o pai acendendo o giz, cuspindo na mão e cortando a terra sem pressa e com precisão, dosando força e arte com uma enxada larga e cega. O corte que ele fez foi tão simétrico, tão exato, que eu fiquei ali com cara de bobo, olhando o pai que fumava distraído. Ele nem sabia que o que ele tinha feito era uma obra de arte, o chão cortado a laser, precisão milimétrica. Ou se soubesse, não achava nada demais, onde já se viu camelar com enxada ser obra de arte?!
   Aprendi com ele que há artes e artes neste mundo afora, e que nenhum doutor ou mestre , cuspindo citações saberia fazer.  Um poema braçal , foi isso o que ele fez ...arquitetura miúda, arte de joão-de-barro!
   O bobo do pai tem saudades até hoje da escola que ele não foi, a não ser umas poucas semanas picadas do primeiro ano da escola de roça. Mesmo assim, ele sabe quanto medem as jardas e milhas das distâncias do mundo, e quanto pesam as onças e libras das farturas tão mal distribuídas do mundo, e isso só ele e sua infância mirrada sabem o quanto. Sabe também que certas curvas das estradas do mundo medem noventa graus, sem conhecer Euclides, só o seu Cride, compadre dele, nem Tales, a não ser o neto do seu Luís, vizinho dele. E sabe olhar para um caboclo e saber pelo jeito  de andar e de falar se ele presta ou não vale nada, com margem de erro de apenas 0,01 por cento.
   E tudo isso, com o bolso cheio de sementes!
   O pai me ensinou poesia!
   A mãe, porém ,mais que tudo, me ensinou a ter coração e a fazê-lo grande.
   se não, como eu saberia tudo isso do pai?

  

  

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