O rapaz o chamou com voz indiferente.Talvez nem soubesse o que
seria aquele envelope. O velho sabia. O
logotipo, o tamanho do envelope, a impressão estereotipada. Era mesmo aquilo
que ele esperava. E temia.
Lá
fora, no viaduto imundo de fuligem , a vida continuava. Famílias inteiras
debaixo dele, carros demais por cima dele,velocidade absurda e indiferente, cães, sujeira, fedor de mijo .
Olhou
pela janela carcomida. Árvores seculares , portões de ferro fundido, um gato
gordo ressonando , num ar de decadência já familiar. Aquilo tudo fora de seu
avô, de seu pai e ele recebera de papel passado, herança verdadeira, com a
incumbência de não baixar a cabeça e de
sustentar como pudesse o sobrado, a área
verde, a biblioteca imponente e alguns
quadros respeitavelmente empoeirados ao lado do título de nobreza comprado, da
época do Império.
A área
verde sobrevivia meio cinzenta e um pessoal que
usava camisetas com frases de efeito e um cabelo além da hora da tesoura, o
procurava para fotografar aquilo tudo, de modo que o velho começara,aos
poucos, a se sentir útil e orgulhoso, e os olhos nos quadros já não o encaravam
mais com desprezo . Até a tentação de vender a mobília antiga aparecia agora com menor freqüência.
O rapaz
incomodava pouco, falava pouco . Tinha pouca barba, pouca carne e poucas
necessidades. Nada que lembrasse a mãe.
O gato gordo
sumia por dias e retornava sempre mais magro, com algumas marcas feias e profundas na carne.
Alguns dias de imobilidade e ração vagabunda o recompunham , até que o cheiro
de cio o despertasse de novo. O velho se perguntava por que seu olfato não
funcionava desse jeito. O gato era mais vivo que ele e o rapazinho juntos.
Mas as fotos, os quadros, o passado solene e grave escondido no sobrado
imponente, o título de nobreza, o gato orgulhoso e indiferente, o caderno verde
de poemas erráticos e irregulares, nada disso importava. A desapropriação
anunciada chegara, o papel timbrado gritava dentro da gaveta.
Ele era
um nada. O garoto era um nada. O sobrado era um nada. Um desperdício de espaço
numa cidade sedenta por espaço. Aquela área enorme, seu silêncio verde-escuro, seus mortos solenes e sua história eram um
anacronismo na metrópole desmesuradamente
grande e onomatopaica.
Ali,
seu lugar, estaria destinado a ser, decerto, um aglomerado de casebres sem
personalidade, povoado por gente barulhenta e sem história, rasgado por ruas
velozes demais.Isso provocou um soluço mudo e sofrido no velho; os
burocratas amparados por decretos, éditos, leis e parágrafos nem sequer sabiam
do juramento de manter a cabeça erguida, os quadros vivos e o jardim
silencioso.
Acendeu
um cigarro.O gato saiu apressado, farejando vulvas invisíveis. Lembrou-se de
Augusto dos Anjos.
Quando a cidade em nome do bem coletivo tomar o nosso espaço vamos seguir os gatos.Eles sabem onde as vulvas se encontram.É melhor viver sem casas do que sem vulvas.Enquanto uma vulva fizer a minha
ResponderExcluiralegria...Eu poderei dizer Auuuuuuuuuuuuuuu!
é o samba do black crazy: tom transformou o sobrado do alício na ilha do dr. moreau: um cão que transa com uma gata, que bicha sairá disso?
ResponderExcluirbicho...eh eh eh eh
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