sábado, 15 de dezembro de 2012

O Sobrado Perto do Viaduto


                 O rapaz o  chamou com  voz indiferente.Talvez nem soubesse o que seria aquele envelope. O  velho sabia. O logotipo, o tamanho do envelope, a impressão estereotipada. Era mesmo aquilo que ele esperava. E  temia.
                Lá fora, no viaduto imundo de fuligem , a vida continuava. Famílias inteiras debaixo dele, carros demais por cima dele,velocidade absurda e indiferente, cães, sujeira, fedor de mijo .
                Olhou pela janela carcomida. Árvores seculares , portões de ferro fundido, um gato gordo ressonando , num ar de decadência já familiar. Aquilo tudo fora de seu avô, de seu pai e ele recebera de papel passado, herança verdadeira, com a incumbência de não baixar a cabeça  e de sustentar como pudesse o sobrado, a  área verde, a biblioteca imponente  e alguns quadros respeitavelmente empoeirados ao lado do título de nobreza comprado, da época do Império.
                A área verde sobrevivia meio cinzenta  e um pessoal que usava camisetas com frases de efeito e um cabelo além da hora da tesoura, o procurava para fotografar aquilo tudo, de modo que o velho começara,aos poucos, a se sentir útil e orgulhoso, e os olhos nos quadros já não o encaravam mais com desprezo . Até a tentação de vender a mobília  antiga aparecia agora com menor freqüência.
                O rapaz incomodava pouco, falava pouco . Tinha pouca barba, pouca carne e poucas necessidades. Nada que lembrasse a mãe.
                O gato gordo sumia por dias e  retornava  sempre mais magro,  com algumas marcas feias e profundas na carne. Alguns dias de imobilidade e ração vagabunda o recompunham , até que o cheiro de cio o despertasse de novo. O velho se perguntava por que seu olfato não funcionava desse jeito. O gato era mais vivo que ele e o rapazinho  juntos.
                Mas as fotos, os quadros, o passado solene e grave escondido no sobrado imponente, o título de nobreza, o gato orgulhoso e indiferente, o caderno verde de poemas erráticos e irregulares, nada disso importava. A desapropriação anunciada chegara, o papel timbrado gritava dentro da gaveta.
                Ele era um nada. O garoto era um nada. O sobrado era um nada. Um desperdício de espaço numa cidade sedenta por espaço. Aquela área enorme, seu silêncio verde-escuro,  seus mortos solenes e sua história eram um anacronismo na metrópole desmesuradamente  grande e onomatopaica.
                Ali, seu lugar, estaria destinado a ser, decerto, um aglomerado de casebres sem personalidade, povoado por gente barulhenta e sem história, rasgado por ruas velozes demais.Isso provocou um soluço mudo e sofrido no velho; os burocratas amparados por decretos, éditos, leis e parágrafos nem sequer sabiam do juramento de manter a cabeça erguida, os quadros vivos e o jardim silencioso.
                Acendeu um cigarro.O gato saiu apressado, farejando vulvas invisíveis. Lembrou-se   de Augusto dos Anjos. 

3 comentários:

  1. Quando a cidade em nome do bem coletivo tomar o nosso espaço vamos seguir os gatos.Eles sabem onde as vulvas se encontram.É melhor viver sem casas do que sem vulvas.Enquanto uma vulva fizer a minha
    alegria...Eu poderei dizer Auuuuuuuuuuuuuuu!

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  2. é o samba do black crazy: tom transformou o sobrado do alício na ilha do dr. moreau: um cão que transa com uma gata, que bicha sairá disso?

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